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Por Rosielle Machado, com foto de Henrique Pereira

A vida de Fernando São Thiago poderia ser contada por uma estante de filmes. Ele nasceu em 1932, ano em que foi lançado Mata Hari, com Greta Garbo. Quando cursava Direito, iniciou-se nos filmes jurídicos. Nos tempos de juiz em Tubarão, aprendeu a caçar e se interessou pelos documentários sobre animais de Jacques Cousteau. Com a esposa, sempre assistiu musicais de Fred Astaire. Na lua-de-mel, viu três filmes.

Sim, os 78 anos de Fernando poderiam ser uma estante lotada de fitas, uma para cada pedaço da sua vida. Mas ele achou uma estante pouco: tem uma sala com dez mil filmes (a maioria VHS), quadros de Charlie Chaplin e uma TV 32 polegadas - que há anos não enxerga. Desde que perdeu a visão, após um glaucoma, seu ritual de um filme por dia se tornou um exercício de escuta e imaginação. É a memória que reconstrói cada olhar do mocinho, cada tiro do bandido, cada cena que Fernando São Thiago não vê.

Cinema Paradiso, do diretor Giuseppe Tornatore, é o filme de sua vida: "Fui igual aquele menino, rato de cinema". Como o Salvatore da película, Fernando trabalhou em cinema na adolescência. Foi lanterninha, bilheteiro e porteiro no Cine Busch, em Blumenau. Não pagou entrada durante quatro anos. Igual a Salvatore, viu os cinemas desaparecerem um a um. No filme, o Cinema Paradiso vira um estacionamento; no centro de Blumenau, o Cine Busch hoje é um centro de convenções. “Se eu ganhasse numa mega eu faria um cinema na hora”, sonha Fernando.

Foi frequentando os falecidos Ritz, Glória, Imperial e Odeon, já em Florianópolis, que ele virou cinéfilo indomável. Quando passou um mês em São Paulo para um concurso, internou-se nas salas de cinema. “Vi 50 e poucos filmes. Aí telefonaram pra minha mãe dizendo ‘ó, ele tá indo no cinema’”. Na lua-de-mel não havia ninguém para dedurá-lo, mas hoje ele mesmo confessa que viu três filmes com mais de três horas cada. E a esposa, o que achou? “Barbaridade”, sorri Fernando.
 
A maior arte

Cinéfilo típico, ele gosta de comentar, explicar, criticar. Hoje, sua principal companhia é o motorista, que assiste um filme com ele todos os dias. “Ele aguenta, faz parte do trabalho, já”. Fernando também convida um grupo de amigos para sessões entusiasmadas. “De vez em quando dá briga e tudo, a gente dá cada berro aqui que nossa.”

Quando a Naipe chegou na sua casa, num sábado à tarde, São Thiago estava na sala dos dez mil filmes assistindo Paixão dos Fortes, western americano dos anos 1940. Ele mal dá tempo de alguém perguntar algo e já dispara: “Ó, agora o xerife tá dançando com uma moça, a bela Clementine”. A Naipe olha incrédula para a tela, quase duvidando que ele realmente não enxerga.

– Olha só como ele dança, ele suspendia a perna pra dançar.

– Mas o senhor lembra disso tudo?

– Lembro porque não tô vendo.

Fernando não titubeia quando decide mostrar seus conhecimentos em cinema. Cita todos os filmes de Chaplin e Bogart, conta que já assistiu ...E o vento levou mais de 50 vezes e declara que os melhores filmes brasileiros foram Limite (Mário Peixoto), O caso dos irmãos Naves (Luís Sérgio Person), Carnaval no fogo (Watson Macedo) e Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha). “Os filmes modernos têm qualidade técnica, mas não artística”, opina. “Os de guerra, por exemplo, esses de hoje não se comparam. Resgate do Soldado Ryan, isso é bobagem.” 

Ele gosta de explicar por que considera o cinema a maior arte. “Nem o teatro é igual, porque no teatro você vê o cara falando no palco, mas quando acabou, acabou. No cinema os atores podem até morrer, mas você ainda vê a imagem”, argumenta. “Meu pai e minha mãe, por exemplo, eu tenho gravados. Você vê uma pessoa falando, mas ela já morreu. É a maior de todas as artes.”

A imagem significa tanto para Fernando São Thiago que ele pediu para a Naipe gravar um pouco a entrevista. Gravamos. Agora Doutor Fernando, como o chamam, está que nem Greta Garbo, Humphrey Bogart, Charlie Chaplin e todos os seus milhares de amigos: congelado no tempo.

 
Reportagem retirada na íntegra do site da Revista Naipe.

 

 

Fonte: http://www.revistanaipe.com.br/naipe-na-rua/17-nai