Cristovão Tezza achou que ia ser massacrado pela crítica quando resolveu escrever "O Filho Eterno" (ed. Record).
"Problema pessoal não é problema literário. O tema tem uma pedra no meio do caminho", pensou. A dúvida tinha a ver com a arriscada opção de relatar sua experiência com o filho, que tem síndrome de Down. O cuidado foi excessivo.
Com o romance, o escritor radicado em Curitiba tornou-se a sensação literária de 2008.
é de dar inveja a qualquer autor nacional. Na última quinta, Tezza recebeu o Prêmio Portugal Telecom. Na sexta, foi o Jabuti de melhor romance -e, por pouco, não leva também o Jabuti de livro do ano, que afinal foi para Ignácio de Loyola Brandão. Cristovão já havia faturado os prêmios da Associação de Críticos de Arte de São Paulo e da revista "Bravo!".
Pode não ser tudo. No final de novembro, ainda é forte concorrente para o Prêmio São Paulo de Literatura.
Tezza vai se tornando, assim, uma unanimidade. Trata-se de um fenômeno semelhante àquele que ocorreu com Milton Hatoum, em 2006. Na época, formou-se a convicção de que estava surgindo um novo fenômeno: a consagração dos escritores-acadêmicos. No caso do catarinense, é uma verdade apenas parcial.
Professor tardio
Nascido em Lages (Santa Catarina), há 56 anos, Tezza resistiu a entrar na universidade, o que só fez aos 25 anos. é um "professor tardio", como se define. Sempre desejou ser escritor e precisou insistir. A consagração chegou em sua 14ª obra de ficção. "O Filho Eterno" já foi lançado na Itália e em breve ganha edições em Portugal, na França e na Espanha.
A força do livro está em traduzir friamente, sem concessões, o choque e a revolta de um jovem transgressor, um "filhote retardatário dos anos 70 e dinossauro medieval", ao descobrir a condição excepcional do filho recém-nascido.
O romance amadureceu ao longo de dez anos. "é um exercício da crueldade. Esse é o principal atributo do narrador. Ele não pode ter piedade de nada e de ninguém", diz Tezza.
Literariamente, o livro dialoga com duas grandes obras que abordam o mesmo tema.
A primeira é "Uma Questão Pessoal" (Companhia das Letras), do Prêmio Nobel japonês Kenzaburo Oe. "Além de tudo, Oe também expressa aquela coisa dos anos 60, de rebeldia", diz Tezza.
Outra influência assumida é "Nascer Duas Vezes" (Companhia das Letras), do italiano Giuseppe Pontiggia. "São depoimentos pessoais, é um diário do escritor com o filho."
A verdadeira resposta para o livro, no entanto, veio do Prêmio Nobel sul-africano J.M. Coetzee, autor de "Juventude" (Companhia das Letras).
"Esse é um dos livros mais cruéis que já li sobre a adolescência. Mostra o processo do narrador sair da confissão e se transformar em objeto. é o que o autor precisa fazer. Aquilo me deu a chave, foi quando me livrei da primeira pessoa."
A partir daí, com a moldura ficcional estabelecida, a escrita fluiu. "Quando comecei a escrever, todos os problemas pessoais e emocionais já estavam resolvidos. A questão era como transformar isso em literatura", diz o escritor.
"O Filho Eterno" coroa uma carreira bem-sucedida que está longe de ser banal: "Eu tinha tanto problema com a academia, quando jovem. Não quis fazer vestibular. Achei que universidade ia acabar comigo como escritor. Bem de acordo com a cabeça dos anos 70. Fui meio bicho-grilo, um hippie "à brasileira". Queria ser artista, transgressor", afirma.
Nos anos 60, Tezza participou de uma comunidade de teatro, liderada por Wilson Rio Apa, um guru que "tinha uma visão rousseauniana do mundo e era um ecologista "avant la lettre´". Seguindo os passos do mestre, quis realizar uma aventura literária que foi a inspiração de grandes autores, como Melville: tornar-se um marinheiro. "Era o máximo do romantismo. Achava que os projetos intelectuais tinham de ser também projetos existenciais, uma idéia bem anos 60."
Assim, em pleno regime militar, em 1971, Tezza rumou para o Rio de Janeiro e se inscreveu no curso para marinheiro. "Fiquei seis meses estudando, enquanto lia "Cem Anos de Solidão". Mas nunca pisei em um navio." Em seguida fez curso de correspondência para relojoeiro. Praticou o ofício, mas acabou abandonando.
Foi com esse background que o escritor passou a se dedicar à literatura -lançado por pequenas editoras- e à bem-sucedida carreira acadêmica.
Hoje, é autor de uma respeitada tese, já publicada: "Entre a Prosa e a Poesia - Bakhtin e o Formalismo Russo" (Rocco).
Com a universidade, fez a "descoberta do discurso da ciência". E, na literatura, ainda que tenha começado com poesia e seja um autor versátil, se declara "fundamentalmente um romancista".
De acordo com Tezza, "mostramos dificuldade com a cultura romanesca. A península Ibérica tem uma tradição de poetização do discurso romanesco, bem diferente da tradição inglesa ou americana. O brasileiro tem uma certa vergonha de ser narrador, ele precisa ser um poeta. Guimarães Rosa é um poeta da prosa. Machado de Assis está do lado oposto".
Tezza acha natural que os críticos atualmente se dediquem à produção literária. "Antigamente, havia a crítica acadêmica e os escritores, como Jorge Amado, Carlos Heitor Cony ou Antonio Callado. Eram duas áreas bem distintas" diz. "A partir dos anos 70, passou a haver uma fusão, um tipo de elaboração acadêmica sobre a literatura, e hoje eles estão muito próximos. A universidade dá condições de sobrevivência."
Foco em Curitiba
Com o sucesso do autor, a capital paranaense passa a ter duas estrelas literárias. "Curitiba é um exílio. A literatura pula de São Paulo para Porto Alegre. A solidão do Dalton [Trevisan], aquela coisa meio caipira, é um retrato da cidade. Ela é magnífica para escrever, te dá distância. Mas você pena enquanto não entra no eixo Rio de Janeiro-São Paulo."
Agora, aproveita o embalo com os prêmios para rascunhar a carta de demissão.
Se possível, deseja se dedicar apenas à literatura. "Quero me dedicar mais à felicidade, à leitura. O escritor precisa de ócio", conclui.
Pode até ser possível. Com o Portugal Telecom, recebeu R$ 100 mil. Se tirar a sorte grande com o Prêmio São Paulo, da Secretaria de Estado da Cultura, pode até sonhar com mais R$ 200 mil.