Com o objetivo de reconhecer a atuação de catarinenses nos movimentos de resistência ao golpe militar, a Assembléia Legislativa realizou na quinta-feira (29) uma sessão solene em alusão aos 40 anos dos Movimentos Sociais de 1968. A homenagem, feita em parceria com a Fundação Catarinense de Cultura (FCC) e a ONG Cidade Futura, contou com a participação do jornalista e escritor Zuenir Ventura, que lançou o livro "1968 - O que fizemos de nós". As galerias do Plenário Osni Régis foram ocupadas por jornalistas, escritores, líderes estudantis e políticos que vivenciaram "os anos de chumbo", bem como de jovens alunos matriculados em escolas da capital.
Durante o evento nove personalidades receberam uma placa comemorativa: Sérgio da Costa Ramos (que discursou por todos os homenageados - veja abaixo o discurso na íntegra), Salim Miguel, Marcílio Krüeger, Rogério Queiroz, Derley de Lucca, ex-senador Nelson Wedekin, Romário José Borelli (que cantou uma música de sua autoria - veja abaixo a letra) e o ex-deputado estadual Roberto Motta (in memoriam), além do escritor mineiro Zuenir Ventura.
Para o deputado Edison Andrino, que propôs a homenagem, quando se fala em 1968 vem à memória acontecimentos que estão no nosso inconsciente da sociedade que ainda hoje é motivo de estudos e pesquisas. Muitos fatos que aconteceram naquele período justificam mudanças nos costumes que influenciaram gerações. "Esta época foi balizada por acontecimentos que revolucionaram a ciência, como a primeira cirurgia cardíaca. Foi um tempo de transformações para a vida das pessoas, de modernização e liberação da sociedade", declarou.
A constante agitação política e social que o mundo passava também foi mencionada pelo parlamentar. "O país inicia as manifestações populares e as lutas pelo fim da ditadura militar, mas junto com elas também iniciam os conhecidos anos de chumbo. Que balanço se pode fazer de um ano tão carregado de sonhos?", questionou Andrino.
Anita Pires falou em nome da Fundação Catarinense de Cultura (FCC). Ela relatou que esta homenagem é cheia de emoção porque reuniu pessoas que caminharam juntas na mesma época, com os mesmos sonhos, em uma época de muito sofrimento.
A presidente da FCC aproveitou a oportunidade para falar diretamente aos estudantes que assistiram à sessão solene. Conforme Anita, além de ser uma homenagem a todos os companheiros, também são eles que devem conhecer esta história e exercer a cidadania. "Quando falam sobre 1968 tenho a lembrança de que tínhamos uma revolta existencial, que fez romper com o machismo, autoritarismo e principalmente o rompimento com a guerra, lutando pela construção de uma sociedade solidária e fraterna. A nossa palavra de ordem era faça amor e não faça a guerra e cantávamos a canção quem sabe faz a hora e não espera acontecer", relatou.
Em nome dos homenageados, o jornalista Sérgio da Costa Ramos falou sobre as censuras sofridas pelos intelectuais da época. "A palavra, a prece, a música, tudo passou a ser negado. O bicho da ditadura não era folclórico ou um bicho do bem. O bicho da ditadura era o carcará que pega, mata e come", frisou.
Presidente da Cidade Futura, Paulo Teixeira mencionou a dificuldade que tinham de fazer uma pequena reunião e manifestar o que seria os desejos naquele período. "Acreditávamos que naquela reunião poderíamos mudar não só a nossa a vida, mas a sociedade brasileira, as leis desse país, a condição humana das pessoas que necessitavam das outras para ter uma vida saudável. Tínhamos orgulho de ser militantes das causas que acreditávamos. Foi um ano de muitos sonhos", concluiu.
1968 - O que fizemos de nós
Zuenir Ventura lançou seu livro "1968 - O que fizemos de nós" durante a sessão solene. Ele fez uma pequena explanação sobre a sua obra, na qual declarou que se sentia cobrado a relatar o que aconteceu naquele ano e a obra acabou sendo um segundo balanço sobre o período. "Não quero ser saudosista, é um olhar generoso, mas não saudoso. O legado de 1968 é uma herança positiva muito importante deixada por quem viveu aquele ano, a quebra dos valores e as mazelas do país não podem ser remetidas a 1968", ressaltou.
O escritor também traçou um paralelo entre a geração de 1968 e a geração de 2008. "A geração de 1968 é muito mais aguerrida e solidária, enquanto a geração de hoje é mais tímida e voltada para si", refletiu.
Fizeram acontecer
(Sérgio da Costa Ramos)
Neste maio de 2008, de céu azul e plenilúnios, recebi de um repórter do etéreo, desses que fazem questão de ouvir "o outro lado", a notícia de que o Papa Gregório XIII, o do calendário, não se conforma com aquele ano incompleto, o de 1968.
Debruça-se, até hoje, aflito, sobre a tragédia de um de seus filhos, o Ano da Graça de 1968. Aquele ano que não teria terminado, segundo a antológica reportagem de um arguto filósofo do cotidiano brasileiro, Zuenir Ventura.
O que teria acontecido com o ano de 1968 no Brasil?
Para resumir o sinistro hiato do calendário, recuperaram-se as imagens da Agência Nacional, capturando a "fala do trono" das 19 horas do dia 13 de dezembro de 1968. O ano, que começara com a esperança de uma primavera institucional, sob os acordes de "Alegria, Alegria", de Caetano Veloso, tingia-se de chumbo, com as duas interjeições agudas do preâmbulo de "O Guarani", aquele prefixo da "Voz do Brasil", sempre confundido com as más notícias.
Na tela, em preto e branco, delinearam-se duas figuras, o locutor oficial Alberto Cúri e o Ministro da Justiça, Luiz Antônio da Gama e Silva.
Ali, 99 anos depois da estréia de O Guarani no Scala de Milão, um libreto liberticida e uma ópera obscura cavaram frêmitos de repulsa no peito do maestro Carlos Gomes, desencarnado, mas não insensível. Os prelúdios do Guarani invadiram a atmosfera da Tropicália, esquartejando a frustrada brandura do regime e recrudescendo a ditadura.
O ano foi brutalmente interrompido, os verbos deixaram de ser flexionados no presente e no futuro. Um Big-Bang abriu um buraco negro na Ordem Jurídica, um golpe no golpe. Um Ato Institucional se sobrepôs à Constituição e, na prática, revogou-a em todos os capítulos civilizatórios, de garantias e direitos individuais.
à medida que expelia o seu veneno, lendo o édito "legalicida", o ministro Gaminha tremia sob os óculos um dia partilhados com Joseph Goebbels e Heinrich Himmler, capos do cabo Hitler. Fez o país refluir até a Idade Média e sob a noite de dezembro, já não se esperava o Messias, mas o Príncipe das Trevas.
De repente, antes das 20 horas daquele dia 13, todos os brasileiros vestiram as roupas do bancário K, de "O Processo", de Franz Kafka. Todos se tornaram suspeitos e processados, tendo que provar a própria inocência. Processados sem ter direito a conhecer os autos do processo. Quanto mais procuravam saber sobre os seus processos, mais os brasileiros se comprometiam.
O AI-5 bastava-se pelo parágrafo em que excluía de "quaisquer apreciações judiciais" os atos fundados "neste édito". Perseguidos por tribunais misteriosos, por uma culpa incerta e não formada, os brasileiros encarnados no bancário K. agravavam a sua pena sempre que tentavam se defender.
Para quê defesa? Para quê o contraditório? E para quê, se todos eram mesmo culpados? Se a sentença de morte já estava escrita?
Todos os aqui hoje homenageados foram réus de um governo pária, que cuspiu em todas as fontes e frontes do Direito. Era proibido permitir - o que quer que fosse, nesta República de um só artigo e de uma única voz: a do general-rei.
Pois era preciso calar jovens estudantes, jornalistas, professores, profissionais liberais, funcionários públicos, era preciso, enfim, calar o povo brasileiro. Calar as guerreiras de Atenas contra os generais de Esparta - nossas Anitas, herdeiras da Garibaldi, como a Anita Pires e a Derley Catarina de Lucca.
Derley Catarina, líder estudantil, Derley militante da AP, Derley presa e torturada, Derley ressurgida, como sinônimo de ética, de bravura, de resistência, de reserva moral.
Era proibido pensar e cultivar uma utopia - como era norma na vida do patriota líbano-biguaçuense Salim Miguel, que ficou literalmente "Nur na Escuridão", a caminho de se tornar, hoje. um dos mais importantes intelectuais e escritores do país. A violência da ditadura contra a palavra está resumida num episódio de sua vida. O incêndio de sua livraria, livros ardendo numa fogueira na Praça XV, numa cena brechtiana.
Era proibido o livre-pensar e o jovem idealismo de Rogério Queiroz, presidente da União Catarinense dos Estudantes, e era condenável a valente militância da juventude católica de Marcílio Ramos Krieger, alma da AP em Santa Catarina, que pensava numa Teologia social, capaz de imaginar um melhor destino para o homem enquanto este ainda habitasse a Terra.
Tudo isso era proibido. Como era proibida a destemida atuação de um jovem advogado de sindicatos e, depois, de um espadachim imbatível na defesa dos direitos humanos e dos presos políticos, como o hábil esgrimista Nelson Wedekin.
A palavra, a prece, a música. Tudo passou a ser renegado. A música de Romário José Borelli, um homem de teatro, um criador, um bandonéon que Piazzola acolheria, emocionado, enquanto a Nova Ordem tentava transformar os gemidos do seu instrumento no miado de um gato escaldado, eviscerado e perseguido.
O bicho da Ditadura não era a folclórica e doce bernunça, bicho do Bem, que engolia sem matar e fumava sem tragar. O bicho da Ditadura era o Carcará. Que, como dizia o refrão: Pega, mata e come!
O Carcará não se contentava em comer e calar consciências. Censurar redações, canções e obras de arte. Precisava matar sua fome "do absurdo" e levar Roberto Motta - jovem a quem a tortura psicológica não deixou de cobrar o seu preço kafkiano.
E, no entanto, meu caro Zuenir Ventura, "mais que nunca era preciso cantar e alegrar a cidade," como aliás, cantava a musa Nara Leão, interpretando a clássica e premonitória "Marcha da Quarta-Feira de Cinzas", protesto de Carlinhos Lira e do perseguido poetinha Vinicius de Moraes.
- Acabou nosso Carnaval/ Ninguém ouve cantar canções/ Ninguém passa mais brincando feliz/ E nos corações,/ Saudades e cinzas foi o que restou...
Para consolar o Papa Gregório XIII, porém, poderíamos dizer, hoje, que em nenhum outro ano floresceram tanto as artes, a literatura e a música. A "fechadura" estimulou os vapores artísticos a saírem das panelas de pressão e, transpassados de dor, os corações se puseram a cantar: o tropicalismo, que nascera suave e polimorfo com "Baby", de Caetano Veloso e, "Geléia Geral", de Gilberto Gil, VESTIU-SE para a guerra com "Quem te viu, Quem te vê", "Apesar de Você" e "Roda Viva", de Chico Buarque, o explosivo "Disparada" e aquele que é o hino de todos os protestos, "A Caminhada", ou "Para Não Dizer que Não falei de Flores", de Geraldo Vandré. Entre os sucessos da época, "Travessia", de Milton Nascimento, "Ponteio", de Edu Lobo, "Alvorada", de Cartola, "Andança", de Danilo Caymmi, e o belo e intimista "Sabiá", de Chico e Tom, uma "Canção do Exílio" avant-la-letre, como se os dois já estivessem prevendo a diáspora dos brasileiros, e já chorando pelo próprio desterro: "Vou voltar4/ Sei que ainda vou voltar4/ Para o meu lugar....é lá que eu hei de ouvir cantar uma sabiá..."
E, "Apesar de Você ", Gama e Silva", inspirador do AI-5, e apesar da Ditadura, prosperaram as artes, os espetáculos, a literatura, o teatro, com uma luminosa resistência cultural, estimulada pelos gritos pré-AI-5, como "Liberdade, Liberdade", "Arena conta Zumbi", "O Rei da Vela" e a verdadeira revolução artístico-lítero-musical que se seguiu, num ano que marcaria o relançamento da criatividade "antropofágica" de Oswald de Andrade, num universo reprimido, mas indomável.
O que nos consola, e ao papa do Calendário, é que 1968 finalmente terminou. E terminou bem.
Tem por saldo um período de iluminismo da inteligência e de prevalência do humanismo sobre o obscurantismo.
Sabíamos que não bastava esperar. Era preciso fazer a hora.
Os desafios de hoje são outros. Os alimentos tratados como ações nas bolsas de mercadorias e futuros, o petróleo borbulhando preços especulativos, a Amazônia cobiçada pelos que já destruíram o Mundo duas vezes. A Internet será mesmo a sucedânea de um "Grande Irmão" democratizado? O Google é o sábio supremo? E a Ecologia, deve ser preventiva ou teleológica?
Os jovens, meu caro homenageado Zuenir Ventura, é que saberão nos responder.
Esperemos que eles não... esperem. Que saibam fazer a hora para antecipar o acontecer.
Não está aí, Zuenir, mais um motivo para um terceiro livro?
XXXXXXXXXX
1968
(Romário José Borelli)
Naquele tempo as palavras tinham asas
E escapando por janelas e frestas das casas
Iam voando, murmurando, sobre os vales
Sobre os rios, sobre os campos e florestas
Naquele tempo as palavras tinham cores
E cobriam de repente as cidades com flores
Iam pintando, murmurando, sobre os cenhos
Sobre as bocas, afastando as tempestades
Naquele tempo as palavras tinham fogo
E acendiam nos lares a ternura em todos
Iam queimando, murmurando, sobre as camas
Nos cabelos, destinos da loucura
Naquele tempo as palavras davam vivas
E bebiam nas taças madrugadas festivas
Iam cantando, murmurando, nas tavernas
Nos poemas, nas estrofes das baladas.
Naquele tempo as palavras tinham ninhos
E investiam disparadas com lanças contra moinhos
Ian lutando, murmurando, cavalgando,
Tresloucadas, mensageiras de esperanças.
Mas de repente as palavras sem fronteiras
Acordaram entre muros, assustadas, prisioneiras...
Vieram juízes com mordaças,
Com sentenças no papel
Homens com tochas e lenha
Ah, quantos dias de fel!
Arrastando as correntes, murmuradas com segredo
As palavras tinham senhas, ah quantas noites de medo!
Quanta agonia, para abrir de novo as asas
Para replantar as flores e reconstruir Babel.